O salão de conferências do Hotel Intercontinental de Belém, a cidade onde Jesus nasceu, fervilhava com cerca de quinhentos cristãos provenientes de mais de vinte países. E ali estava eu, em uma das mais importantes cidades da Cisjordânia (incrustada no Estado de Israel e com uma população majoritariamente muçulmana), participando de um “transcendente encontro” organizado pela milenar, outrora grande, mas hoje pequena, igreja palestina. Era o segundo dia da conferência e eu ainda estava tentando digerir tudo o que estava vendo e escutando.
À medida que a conferência se desenvolvia, comecei a ter o sentimento de que talvez a igreja evangélica ocidental (a) seja parcialmente responsável pelo sofrimento que os cristãos palestinos vivem há mais de cinco décadas e (b) esteja contribuindo para criar barreiras para a comunicação do amor de Cristo aos muçulmanos da Palestina e de todo o mundo.
É provável que em um primeiro momento esta afirmação possa parecer muito radical, mas, nas próximas linhas, tentarei explicar por que faço estas afirmações.
Quando o Estado de Israel foi formado, em 1948, milhares de palestinos árabes (muçulmanos “e” cristãos) foram expulsos das terras onde eles e seus ancestrais viviam há mais de mil anos. Isto fez com que campos de refugiados palestinos (volto a insistir: compostos por muçulmanos “e” cristãos) fossem formados em diferentes países do Oriente Médio e na própria Palestina. Estes campos existem até hoje. As pessoas que neles vivem são consideradas cidadãs de segunda classe, sem esperança e sem perspectiva de um futuro melhor. Milhares de árabes palestinos, assim como de judeus, já morreram como resultado das tensões causadas por esta situação. A cada semana, mais mortos (e famílias dilaceradas) são adicionados à lista.
Esta realidade faz com que os muçulmanos em geral, mas particularmente os que vivem no Oriente Médio e Norte da África, alimentem uma forte animosidade contra os judeus e cristãos de todo o mundo.
É claro que, independentemente da nossa posição teológica, não é difícil entender a razão de tanta animosidade em relação aos judeus. Porém, por que esta animosidade (para não dizer ódio) se estende aos cristãos? Em parte por causa das convicções e ações de cristãos evangélicos sionistas.
Para entendermos melhor o que isto significa, é importante primeiramente definirmos dois termos:
1. Sionismo: é “o movimento nacional para o retorno do povo judeu à sua pátria e a retomada da soberania judia na Terra de Israel. Desde o seu início o sionismo advogou objetivos tangíveis e espirituais. Judeus de todas as tendências -- esquerda, direita, religiosa e secular -- formaram o movimento sionista e, juntos, trabalharam para alcançar os objetivos traçados”.1
2. Sionismo cristão evangélico: é o apoio dos cristãos evangélicos “à causa sionista... Alguns cristãos creem que o retorno dos judeus a Israel está em consonância com a profecia bíblica”.2 É importante salientar que para tais cristãos Deus continua a tratar o povo de Israel como “a menina dos seus olhos”. A formação do Estado de Israel (com a extensão geográfica mencionada no Antigo Testamento) e a reconstrução do Templo em Jerusalém são condições “sine qua non” para a volta de Cristo.
Portanto, o sionismo cristão evangélico é um sistema teológico que não apenas reconhece o direito dos judeus de terem uma pátria (muitos cristãos reconhecem este direito), mas que vai além e acrescenta a isto uma complexa interpretação das profecias do Antigo Testamento, aplicadas ao moderno Estado de Israel.
E qual é o resultado prático desta interpretação literal? Um apoio incondicional de milhões de cristãos evangélicos ocidentais a praticamente todas as decisões e ações políticas do governo israelense.
Isto não deveria nos surpreender, já que é um desenrolar lógico do sionismo cristão evangélico. Se o Estado de Israel tem o mandato divino de controlar toda a Palestina e reconstruir o Templo em Jerusalém, e com isto criar as condições necessárias para a volta de Cristo, então devemos dar todo o apoio necessário para o governo israelense. Se nós apoiarmos o povo de Deus (isto é, Israel), nós seremos abençoados!
Com isto:
1. O que às vezes se assemelha a uma limpeza étnica de árabes palestinos (muçulmanos e cristãos) é interpretado como se fosse a implementação da vontade de Deus e o cumprimento de profecias.
2. O muro de cerca de 10 metros de altura e de quilômetros de extensão, que separa Belém e outras cidades da Cisjordânia de Israel, e que traz consequências políticas, econômicas e sociais irreparáveis para os árabes palestinos3 (muçulmanos e cristãos), é visto como um mal necessário.
3. Cristãos sionistas de todo o mundo enviam milhões de dólares para Israel, para sustentar a criação de assentamentos considerados ilegais pelas Nações Unidas, acirrando a violência entre árabes e judeus.4 5
4. Igrejas evangélicas no Ocidente desenvolvem liturgias com aparatosos componentes do judaísmo vétero-testamentário, produzindo uma quase idolatria aos costumes e tradições judaicos.
5. Poderosas organizações cristãs ocidentais fazem um forte “lobby” junto aos seus governos para que aceitem a violenta repressão que o governo israelense faz sobre os árabes palestinos (muçulmanos e cristãos).6
6. Várias organizações cristãs apoiam os esforços de grupos ortodoxos radicais judeus para a reconstrução do Templo em Jerusalém, o que implicaria a destruição da Mesquita de Omar e o Domo da Rocha, com resultados catastróficos.7
É bem possível que a esta altura alguns já estejam se perguntando: por que repetir tantas vezes a expressão “muçulmanos e cristãos”? A razão é simples: geralmente esquecemos que, diferentemente do que acontece em alguns países muçulmanos, na Palestina existe uma igreja oficial e historicamente reconhecida e os cristãos palestinos também estão sofrendo como resultado das ações do Estado de Israel. Há uma igreja ancestral na “Terra Santa”, que está minguando não necessariamente por causa da perseguição dos muçulmanos, mas, principalmente, como resultado da política israelense, que tem o apoio de milhões de cristãos ocidentais.
Além disso, muçulmanos de todo o mundo estão acompanhando o desenrolar destes acontecimentos e chegam à conclusão de que há uma nova cruzada sendo desencadeada contra os seguidores de Maomé.8 Isto traz um acirramento e polarização das posições, fazendo com que seja cada vez mais difícil para um cristão apresentar-se a um muçulmano e dizer que está trazendo as boas novas do amor de Deus em Cristo Jesus.
Será que o sionismo cristão evangélico está nos ajudando na tarefa de anunciar ao mundo, e particularmente aos muçulmanos, que Cristo é a nossa paz? Será que com o apoio incondicional que muitos de nós temos dado ao Estado de Israel não estamos construindo enormes barreiras para que os muçulmanos entendam que a mensagem que Cristo trouxe com a nova aliança é uma mensagem de reconciliação? Será que, como cristãos, não podemos amar o povo judeu e orar pela paz de Jerusalém, sem que isto nos leve a sermos condescendentes com os abusos cometidos pelo governo israelense?
N.B.: O autor participa ativamente do trabalho de várias organizações missionárias brasileiras e internacionais. Porém, as ideias expressadas neste artigo são de sua exclusiva responsabilidade e não representam, necessariamente, o posicionamento teológico das organizações com as quais ele está envolvido.
Notas
1. http://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/Zionism/zionism.html
2. http://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/Zionism/christianzionism.html
3. https://en.wikipedia.org/wiki/Israeli_West_Bank_barrier#Effects_on_Palestinians
4. Uma das organizações que solicitam contribuições de cristãos para “adotarem” financeiramente assentamentos judeus considerados ilegais pela ONU é a Christian Friends of Israeli Communities.
5. Veja também um artigo sobre a participação dos evangélicos dos Estados Unidos no fortalecimento do atual Estado de Israel por razões teológicas: .
6. Uma destas organizações é a Unity Coalition for Israel (UCFI), que exerce forte influência sobre os membros dos partidos Democratas e Republicanos, nos Estados Unidos . Outra destas organizações, chamada Christian Coalition, investe uma parte considerável do seu orçamento de 25 milhões de dólares anuais em ações pró-Israel.
7. SIZER, Stephen. “Christian zionism”; road-map to Armageddon? Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2004. p. 234.
8. Para entender um pouco mais sobre por que os muçulmanos creem que os países “cristãos” lançaram uma nova cruzada contra os muçulmanos, veja um dos muitos exemplos disponíveis na internet
• Marcos Amado é diretor para a América Latina do Movimento de Lausanne e missionário da Sepal.